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OPINIÃO: O futuro do Supremo, após a aposentadoria de Celso e Marco Aurélio

Quando o general Villas Bôas, em abril de 2018, ameaçou uma intervenção do Exército caso o Supremo Tribunal Federal (STF) concedesse determinado habeas corpus, o ministro Celso de Mello repudiou veementemente as falas, qualificando-as de “claramente infringentes do princípio da separação de Poderes” e alertando: “Parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas (e lesivas) à ortodoxia constitucional”.
Também quando Eduardo Bolsonaro ameaçou fechar o Supremo, o decano da Corte veio a público para dizer que “essa declaração, além de inconsequente e golpista, (…) só comprometerá a integridade da ordem democrática e o respeito indeclinável que se deve ter pela supremacia da Constituição da República”. Já quando o mesmo Eduardo Bolsonaro ameaçou com a edição de um “novo AI-5”, o ministro Marco Aurélio Mello alertou para os “tempos mais do que estranhos quando há essa tentativa de esgarçamento da democracia. Ventos que querem levar os ares democráticos”.Mais recentemente, quando o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, tuitou um vídeo comparando o STF a uma hiena, o ministro Celso de Mello, em carta pública, lembrou que “nem mesmo o presidente da República está acima da autoridade da Constituição e das leis da República”, por não ser “um monarca presidencial (…) com poderes absolutos e ilimitados”.

Ambos os ministros se aposentam nos próximos anos. A saída de juízes de tamanha envergadura, coragem e técnica seria lamentosa em qualquer cenário. Mas no contexto atual é alarmante.

Caminhamos a passos largos para o negligenciar de garantias básicas pelo Poder Judiciário. Princípios consagrados há décadas vêm, repetida e crescentemente, sendo desrespeitados e flexibilizados em prol de um discurso punitivista midiático. A Operação Lava Jato, em que pesem os inegáveis avanços que possibilitou, abriu as portas para toda sorte de abusos. Criou-se uma “casta” de promotores, procuradores e juízes que, travestindo-se da figura de heróis, vão na contramão do que o ministro Marco Aurélio lembra há tempos: no processo penal os fins jamais justificam os meios.

Garantir que a lei seja cumprida e que os direitos individuais sejam respeitados virou ofensa, pecha de mau juiz ou de conivente com a corrupção. O Judiciário teme a opinião pública e tem se tornado refém dela.

Ao longo dessa perigosa escalada de autoritarismo, o Supremo tem tido o papel fundamental de frear os excessos do Estado. Os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio Mello são expoentes desse movimento e vozes firmes na manutenção do Estado de Direito. Ainda em 2013, no rumoroso caso do mensalão, o decano da Corte declarava: “Em 45 anos de atuação na área jurídica, como membro do Ministério Público e juiz do STF, nunca presenciei um comportamento tão ostensivo dos meios de comunicação social buscando, na verdade, pressionar e virtualmente subjugar a consciência de um juiz”.

De lá pra cá a coisa só piorou. O Supremo tem enfrentado a fúria punitivista das ruas, é alvo de protestos e de passeatas que, sob o slogan “vem para a rua salvar a Lava Jato”, bradam contra a Corte, contra os ministros que julgam de maneira diversa de parte da opinião pública, ainda que na estrita aplicação da lei e da Constituição.

O STF e seus membros se tornaram, assim, alguns dos principais alvos do “ódio cego e visceral”, da “irracionalidade do comportamento humano e do fundamentalismo político”, como ressaltou Celso de Mello ao responder a manifestação de uma advogada que, por discordar de uma decisão do pleno do Supremo, pedia: “Estuprem e matem as filhas dos ordinários ministros do STF”.

Parte da população busca, no grito e pela via do Judiciário, alterar leis democraticamente votadas por representantes do povo inteiro. Num cenário fervente como esse, mais do que nunca é necessário ter o que o ministro Gilmar Mendes qualificou como a mais importante característica de um magistrado: coragem. Conforme lembrou quando ainda exercia a presidência da Corte (2008), a “jurisdição constitucional é um modelo antimajoritário. Quem quiser exercer essa função tem que ter coragem de arrostar aquilo que se chama de opinião pública em um dado momento”.

Foram muitos os exemplos de coragem dados por ambos os ministros ao longo de toda a sua judicatura, mais especialmente nos rumorosos feitos julgados nos últimos anos pela Suprema Corte, sob o escrutínio fervoroso da mídia e da opinião pública, que, ao vivo e em cores, acompanham os julgamentos pela TV Justiça. Basta lembrar seus votos nos casos relativos às conduções coercitivas, à competência da Justiça Eleitoral, à prisão em segundo grau, ao sigilo dos dados do Coaf e à necessidade de respeitar a ordem das alegações finais.

Em que pese a enorme pressão popular por decisões contrárias ao texto da lei e da Constituição, os votos de ambos pautaram-se pela tecnicidade e pela serenidade. Tiveram a coragem de julgar de acordo com a lei. Coisa rara atualmente.

Como disse o ministro Celso de Mello em seu voto proferido no julgamento relacionado às prisões em segunda instância, o STF constitui, “por excelência, um espaço de proteção e defesa das liberdades fundamentais” e seus julgamentos, “para que sejam imparciais, isentos e independentes, não podem expor-se a pressões externas, como aquelas resultantes do clamor popular e da pressão das multidões, sob pena de completa subversão do regime constitucional dos direitos e garantias individuais e de aniquilação de inestimáveis prerrogativas essenciais que a ordem jurídica assegura a qualquer réu mediante instauração, em juízo, do devido processo penal”.

A importância institucional de ambos os ministros vai muito além dos votos que proferem. O Estado de Direito sentirá falta de ministros terrivelmente corajosos e garantistas.

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