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OPINIÃO: Governança estratégica deve nortear reforma do Estado na era digital

 

Por Marco Aurélio Marrafon

Há algum tempo tenho defendido aqui neste espaço o conceito de reengenharia constitucional como a necessária e radical reconfiguração estrutural das instituições oitocentistas do liberalismo democrático que fomentaram a ideia de Estado de Direito.

Tendo em vista o diagnóstico cada dia mais consensual de que existe uma crise nos postulados da democracia liberal e que essa crise pode se tornar um retrocesso civilizatório com o aumento do autoritarismo em escala global, parte-se da ideia de que a superação desse quadro tornou imprescindível a implantação de medidas estruturantes para salvaguardar valores universais como os direitos humanos, o governo democrático, a liberdade, a separação dos poderes e os limites do poder estatal, bem como a redução de desigualdades e a concretização de direitos sociais.

Assim, para preservar esses objetivos da gestão pública e fazer cumprir o papel que se espera do Estado, as formas estruturais pensadas há aproximadamente três séculos não se mostram efetivas atualmente.

Pelo contrário, sua perda de legitimidade é evidente. Na Era Digital, o tempo do Estado burocrático não é o tempo da vida, o que tem gerado forte descrença e rejeição da política, aliado a arroubos autoritários.

Desta feita, é preciso transformar as estruturas e preservar as finalidades públicas, notadamente a concretização dos direitos fundamentais e a busca de vida plena aos cidadãos.

As mesmas reflexões se aplicam ao contexto brasileiro: a fim de assegurar o conteúdo funcional da Constituição de 1988 é preciso reconstruir sua arquitetura estrutural, ou seja, novos meios para realmente alcançar a efetividade dos fins constitucionais.

Nesta oportunidade, ouso enunciar algumas ideias que possam se tornar diretrizes para o futuro do Estado, em uma perspectiva ensaísta e provocativa para que o debate e o tempo amadureçam as reflexões.

A Constituição de 1988, inspirada nos ideais do Estado de Bem-Estar europeu (keynesiano, providencialista) que emergiu após a Segunda Grande Guerra, trouxe consigo fortes preocupações com os sistemas de controle, com a impessoalidade na gestão pública e um arquétipo estatalista que rapidamente se mostrou esgotado ante as demandas do fim do milênio. O grande avanço na salvaguarda dos direitos fundamentais individuais e sociais não veio acompanhado de estruturas sustentáveis fiscalmente e capazes de garantir sua efetividade.

O modelo pensado tinha uma tendência irrefreável para o avanço das corporações e o inchaço da máquina pública, de modo que o excesso de estruturas estatais se tornou obstáculo para a efetividade dos direitos fundamentais, e não meio para concretizá-los.

Sem demoras, vieram as pressões por reformas. Especialmente a partir de 1995, emergiu o Plano Diretor da Reforma do Estado proposto pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), cujo objetivo era operar um câmbio entre o paradigma burocrático-controlador para o gerencial-fiscalista na Administração Pública.

Novos conceitos foram introduzidos. Pregava-se a redução do tamanho do Estado, a descentralização e desconcentração dos serviços públicos, a flexibilização de controles, maior autonomia dos gestores em prol de resultados, maior abertura à sociedade civil, maior relacionamento com o chamado terceiro setor, a necessidade de novos entes gestores sob a tutela técnica e não política (p. ex. agências reguladoras) e um rígido controle das contas públicas.

Veio uma série de concepções empresariais, como a ideia do cidadão-consumidor, o princípio da eficiência em uma perspectiva mercadológica, privatizações e a crença nos mecanismos de mercado como vetores de desenvolvimento. O conceito de eficiência estava atrelado a uma noção rudimentar de Estado-empresário.

Como pano de fundo teórico, o paradigma gerencial-fiscalista se apresentava conectado à concepção de Estado-Regulador.

Em palavras ligeiras, um Estado-Regulador é aquele que ao invés atuar diretamente nas políticas públicas, gastando ele mesmo os recursos auferidos via tributação, estabelece normas e regula as atividades privadas para que elas gerem desenvolvimento a partir de condições de funcionamento eficiente, conforme ensina La Spina e Majone1.

Passados alguns anos das reformas estruturantes, cujo marco legal se revela nas emendas constitucionais n. 19 e n. 20 de 1998, inúmeras são as razões que obstacularizaram a implantação desse modelo no Brasil.

Dentre elas, pode-se mencionar a cultura política avessa ao planejamento de longo prazo e ao tratamento técnico de questões públicas até a resistência burocrática a ações orientadas pelo desempenho, especialmente em um ambiente de rigor fiscal2.

Contudo, além do plano prático relativo ao contexto brasileiro, novos desafios se impõem ao novo Estado que não podem ser relativizados: i) o advento da era digital e o incrível desenvolvimento das novas tecnologias, ii) as mudanças no mindset dos cidadãos, cada vez mais ansiosos, impacientes e (des)informados, iii) os limites internos e externos à soberania nacional, os quais impõem constrangimentos e condicionantes aos poderes estatais, cerceando o potencial de atuação centralizada do Estado3, iv) a necessidade de maior integração com a sociedade civil e atuação em rede, bem como v) a maior participação dos cidadãos na produção normativa, ante o aumento de complexidade na base social e o incremento do pluralismo nas expectativas e modos de vida.

Daí é imprescindível a adoção de uma lógica pós-burocrática radicalmente inovadora, digital e conectada com as demandas contemporâneas, um Estado enquanto centro de inteligência e governança estratégica.

Pautado por uma racionalidade pública e no interesse coletivo, não necessariamente estatal e nem mesmo empresarial, esse modelo prioriza a inteligência de análise e tratamento de dados, as evidências e os mecanismos de governança para o fim maior de concretização dos direitos fundamentais individuais e sociais por meio de políticas públicas. Seu compromisso não é com a estrutura, mas com os resultados.

No olhar proposto, as inovações de governo digital ou govtech não são apenas instrumentos a facilitar as medidas executivas. Elas adquirem forte assento no nível estratégico de decisão.

A primeira característica desse modelo é a prioridade no nível estratégico: ao lado dos mandatários eleitos, um corpo de executivos públicos de alta qualificação e bem preparados formam um conselho de governança no Poder Executivo, cuja missão é analisar dados, avaliar diagnósticos, planejar, definir atribuições táticas e operacionais, estabelecer indicadores e monitorar o cumprimento das metas a serem executadas na própria gestão pública ou por meio de parceiras com a iniciativa privada.

Assegurada a atuação direta do Estado em atividades consideradas essenciais e que demandam garantias igualmente públicas, os demais serviços públicos não necessariamente teriam execução estatal. Tampouco se submeteriam à razão mercadológica.

Para que seja possível o monitoramento na execução das políticas públicas, o controle e fiscalização dos seus agentes, a adoção de políticas de integridade (compliance) e responsabilização de agentes públicos e privados (accountability) o modelo estratégico deve se aliar ao compromisso fortemente regulador.

Regulação e monitoramento são imprescindíveis para bons resultados. Por isso, a prestação de serviços públicos de índole meramente operacional ou direta deve prestigiar a parceria com a iniciativa privada, restando ao Estado maior foco na atividade regulatória em detrimento da prestação direta e ação operacional.

Neste quesito, não há grandes novidades. A inovação é aliar essa regulação com um modelo de governança estratégia e inteligência pública ditando os rumos do futuro e que não se restringe à regulação tradicional. Ele atua também como indutor do desenvolvimento.

Superando as dicotomias da modernidade entre Estado e sociedade civil, o modelo proposto atua dialeticamente com a esfera privada, de modo a promover novos vetores de desenvolvimento a partir da síntese dessas duas forças dialogantes.

Nessa dialética supera-se a leitura desenvolvimentista clássica, que credita ao Estado o papel de motor da história, sem atribuir exclusividade à sociedade civil e aos mecanismos de mercado a missão de fomentar os avanços sociais.

O novo Estado induz, provoca, gera incentivos e estabelece punições. Indica caminhos, constrói meios em conjunto e atua com a sociedade no progresso civilizatório e na promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Por fim, esse modelo há de ser interativo: ante a insuficiência contemporânea da produção normativa puramente estatal, a governança deve interagir com os diferentes atores sociais, de modo a permitir sua participação e adotar mecanismos de construção colaborativa e compartilhada tanto no âmbito da formulação das políticas, quanto de seu arcabouço legal regulatório.

Um exemplo prático e que revela uma tendência é o Comitê Gestor de Internet composto por membros do setor empresarial, acadêmico-científico, empresarial e entidades não governamentais. Sua atribuição principal é a formulação de orientações estratégicas sobre o uso e o desenvolvimento da internet no Brasil, além de promover estudos e pesquisas sobre a temática (conferir: www.cgi.br),

Estratégico, regulador, indutor do desenvolvimento e interativo: eis um conjunto de diretrizes para se pensar o novo Estado e assim orientar as reformas administrativas em prol de resultados, a reelaboração dos marcos regulatórios e a formulação de políticas públicas baseadas em evidências.

Um Estado leve, porém forte, necessário e dotado de lógica pública não necessariamente estatal. Afinal, na Era Digital se tornou urgente que as instituições funcionem e forneçam respostas às necessidades da população, de modo a possibilitar a efetividade dos direitos fundamentais individuais e sociais, resgatar a legitimidade da política e preservar importantes postulados da democracia liberal.

Conjur

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